"O Mundo acorda e adormece sem que ninguém o embale.


Ainda assim, estou disposta a oferecer-lhe a minha canção."




quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Nós Árabes - Eduardo Cabrita - Correio da Manhã


Nós Árabes - Eduardo Cabrita - Correio da Manhã


Desde que, em 711, Ibn-al-Tarik cruzou o estreito a que viria a dar o nome que a nossa história é marcada pela presença e influência árabes. Deram-nos alguns milhares de palavras, notáveis progressos tecnológicos e séculos de abertura cultural e tolerância religiosa. Granada e Silves foram centros de irradiação de uma dinâmica fluorescente que marca tanto os povos ibéricos como a presença romana, essa outra grande civilização mediterrânica.

Séculos de intolerância religiosa marcados pelos discursos do ódio da inquisição e dos fundamentalismos islâmicos afastaram--nos dos nossos vizinhos do Sul no Al-Gharb de além-mar. Mas nestes tempos espantosos de ressurgimento árabe, com os levantamentos populares da Tunísia e do Egito, importa lembrar que temos mais em comum com estes povos, cujo sangue, memória e sentir meridional nos correm nas veias, do que com a Finlândia ou outros povos bálticos. Esquecemos que em poucos locais está tão presente o património de origem portuguesa como no Magrebe, que a capital mais próxima de Lisboa é Rabat, que foi na Argélia que se exilou Teixeira Gomes e de lá vinha a voz quente de Manuel Alegre na nossa noite escura…

As mudanças em curso nos países árabes são de resultado incerto, mas o seu potencial de transformação para a geoestratégia europeia só é comparável à queda das ditaduras do sul da Europa na década de 70 ou ao desmoronar do bloco soviético. O que é espantoso nestes dias é a emergência no mundo árabe de uma juventude urbana qualificada, injustiçada e muitas vezes desempregada (tal como os destinatários da já famosa canção dos Deolinda…) e que não é possível reduzir aos clichés do populismo religioso.

O que se exige na rua é liberdade, fim das cleptocracias corruptas, emprego e liberdade de uso das redes sociais. Será que já alguém notou que nem uma bandeira americana ou israelita foi queimada e como os movimentos religiosos têm dificuldade em acompanhar o comboio da mudança? Tal como desmentimos os que diziam que o Portugal rural e atrasado não estava pronto para a democracia ou cairia na órbita comunista, é dever da Europa da tolerância, do modelo social e da liberdade conceder espaço para que os nossos vizinhos provem existir alternativa para lá das autocracias militares e do fundamentalismo islâmico. Existe um mundo árabe tolerante e plural de Naguib Mahfouz, de Edward Said ou de Amin Maalouf que merece uma oportunidade para dizer não à idade média e aos absolutismos. Como em tempos fomos todos berlinenses, deixemos agora bater o nosso coração árabe. Oxalá…

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A reforma dos sonhos - Eduardo Cabrita - Correio da Manhã

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A reforma dos sonhos - Eduardo Cabrita - Correio da Manhã


A esquerda democrática europeia, atordoada por vinte anos de voluntarismo liberal após a falência do bloco soviético, não encontrou ainda as marcas identitárias que lhe permitam honrar os pergaminhos do modelo social construído desde a II Guerra Mundial e responder à vingança dos mercados especulativos que os Estados decidiram salvar em 2008.

A esquerda social-democrata tem no ativo as sociedades mais igualitárias de sempre, com acesso generalizado à saúde e educação públicas, ao direito à protecção na infância, no desemprego e na velhice e a luxos desconhecidos noutros continentes, como as férias pagas. A generalidade dos portugueses não tem noção de que aquelas banais conquistas não existem nos Estados Unidos ou na China. A epopeia do crédito fácil e da especulação financeira e imobiliária que conduziu à crise global dos últimos anos foi acompanhada do elogio da desigualdade, sob o manto de prémio ao mérito de gestores capazes de rápida multiplicação de lucros, e pela exaltação da xenofobia social retratada em clássicos de época como ‘A Fogueira das Vaidades’ ou ‘Psicopata Americano’. À nossa dimensão tivemos as guerras de comadres do BCP, os casos de polícia do BPN e BPP, os prémios do dr. Mexia e o injustamente esquecido romance de Deus Pinheiro sobre a cultura social do cavaquismo, ‘Eu, Abaixo Assinado’. A tímida reeleição presidencial veio moderar os ânimos da direita que marchava para o poder empurrada pela crise e à boleia do FMI.

Sócrates, que repetiu o erro de fazer opções presidenciais dignas mas a olhar para o passado, voltou a ter espaço para liderar a iniciativa política. Tem agora até Abril um precioso trimestre para provar novamente uma eficácia que desminta as previsões económicas, como sucedeu em 2010, e cale os comentadores da decadência nacional. Mas tem de definir uma agenda progressista e igualitária que permita tornar claro que a opção será entre esquerda reformista e direita liberal, entre solidariedade à europeia ou o privilégio do direito à escolha pelos mais fortes.

Nas presidenciais, os jovens, a classe média urbana e muitos socialistas recusaram optar entre visões de passado. A justiça social, a denúncia do egoísmo da direita europeia, a prioridade às questões ambientais e a intransigência com o espírito manhoso de bloco central são decisivos para que não sejamos o único País com quase 20% dos eleitores perdidos entre as versões metalúrgica e evangélico-chic de votos de esquerda politicamente inúteis.