"O Mundo acorda e adormece sem que ninguém o embale.


Ainda assim, estou disposta a oferecer-lhe a minha canção."




quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O falso herdeiro - Eduardo Cabrita - Correio da Manhã

O falso herdeiro - Eduardo Cabrita - Correio da Manhã


Sá Carneiro foi um contraditório herói da minha adolescência. Rompeu com o destino fácil de um advogado instalado do Norte por amor à liberdade. Esteve na Assembleia de Marcelo Caetano a defender eleições livres e liberdade de imprensa até provar que não havia emenda para o final cinzento da Primavera traída.

Continuou o combate no ‘Expresso’, o primeiro jornal moderno português, que custava 3$50 e que eu ia comprar com excitação para ler o ‘Visto’ quando a censura não o cortava. Esteve no Portugal de Abril a defender, ao lado de Soares, a rápida consolidação democrática, assumia como referências Olof Palme e Willy Brandt e o jornal da sua JSD chamava-se ‘Pe-lo Socialismo’. Ainda recordo, tinha 14 anos, a tensão emocionada de estar com o meu pai na manifestação do Terreiro do Paço de Novembro de 1975 com Soares e Sá Carneiro de apoio à democracia. No final houve granadas de fumo para gerar confusão, mas o "povo foi sereno" e optou pela democracia e pela Europa. Sinto inconscientemente que decidi nesse tempo grande parte do que fiz nos 35 anos seguintes, como não desistir de intervir e dizer o que penso contra as habituais cobardias pragmáticas de vistas curtas.

Sá Carneiro esteve na política e vida por paixão. Por um Portugal cosmopolita e com sentido de risco. Esteve por Snu como esteve pela liberdade. Era um burguês culto com a paixão pelas artes num tempo de mentes luminosas entre a bonomia determinada de Soares e o olhar metálico de Cunhal, mito estalinista filho da burguesia adotado pelo proletariado. Sá Carneiro disse não ao Portugal medíocre, humilde e cinzento do respeitinho pelos poderes e verdades instaladas. Perdeu-se a hipótese de um bloco social que rompesse com o Portugal conservador que nada fez por Abril e com a AD o socialismo democrático passou a contar só com Soares, Zenha e Sampaio. A sua morte deixou mito e enorme vazio. A direita de Cavaco é tudo o que Sá Carneiro não foi.

Cavaco foi um obscuro economista provinciano integrado sem angústias na velha ordem, que estudou em Inglaterra sem ser tocado pelo fruto proibido da liberdade. Uma das tragédias da ausência de Sá Carneiro é o regresso do espírito da direita medíocre com vergonha da política como se a democracia fosse um mal menor. A reeleição de Cavaco, quase sem debates nem campanha, é a ameaça do Presidente pai austero sobre a rapaziada dos partidos. Sá Carneiro era amigo de Natália Correia, Cavaco nem sabia quantos cantos tem ‘Os Lusíadas’...

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