Desde que, em 711, Ibn-al-Tarik cruzou o estreito a que viria a dar o nome que a nossa história é marcada pela presença e influência árabes. Deram-nos alguns milhares de palavras, notáveis progressos tecnológicos e séculos de abertura cultural e tolerância religiosa. Granada e Silves foram centros de irradiação de uma dinâmica fluorescente que marca tanto os povos ibéricos como a presença romana, essa outra grande civilização mediterrânica.
Séculos de intolerância religiosa marcados pelos discursos do ódio da inquisição e dos fundamentalismos islâmicos afastaram--nos dos nossos vizinhos do Sul no Al-Gharb de além-mar. Mas nestes tempos espantosos de ressurgimento árabe, com os levantamentos populares da Tunísia e do Egito, importa lembrar que temos mais em comum com estes povos, cujo sangue, memória e sentir meridional nos correm nas veias, do que com a Finlândia ou outros povos bálticos. Esquecemos que em poucos locais está tão presente o património de origem portuguesa como no Magrebe, que a capital mais próxima de Lisboa é Rabat, que foi na Argélia que se exilou Teixeira Gomes e de lá vinha a voz quente de Manuel Alegre na nossa noite escura…
As mudanças em curso nos países árabes são de resultado incerto, mas o seu potencial de transformação para a geoestratégia europeia só é comparável à queda das ditaduras do sul da Europa na década de 70 ou ao desmoronar do bloco soviético. O que é espantoso nestes dias é a emergência no mundo árabe de uma juventude urbana qualificada, injustiçada e muitas vezes desempregada (tal como os destinatários da já famosa canção dos Deolinda…) e que não é possível reduzir aos clichés do populismo religioso.
O que se exige na rua é liberdade, fim das cleptocracias corruptas, emprego e liberdade de uso das redes sociais. Será que já alguém notou que nem uma bandeira americana ou israelita foi queimada e como os movimentos religiosos têm dificuldade em acompanhar o comboio da mudança? Tal como desmentimos os que diziam que o Portugal rural e atrasado não estava pronto para a democracia ou cairia na órbita comunista, é dever da Europa da tolerância, do modelo social e da liberdade conceder espaço para que os nossos vizinhos provem existir alternativa para lá das autocracias militares e do fundamentalismo islâmico. Existe um mundo árabe tolerante e plural de Naguib Mahfouz, de Edward Said ou de Amin Maalouf que merece uma oportunidade para dizer não à idade média e aos absolutismos. Como em tempos fomos todos berlinenses, deixemos agora bater o nosso coração árabe. Oxalá…
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